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Estórias e comportamentos dos bichos - Capítulo V - A língua portuguesa na perspectiva de um chinês (Terceira parte)
Cultura

Estórias e comportamentos dos bichos - Capítulo V - A língua portuguesa na perspectiva de um chinês (Terceira parte)

O deputado Cão levantou-se e dirigiu para a tribuna, abanando freneticamente o rabo, o que quer dizer, traduzido para a linguagem articulada, que estava a rir-se. Estava manifestamente radiante, pelo que protestou a sua concordância com tudo o que o jurisperito acabara de aclarar.

E este congratulou-se e continuou para concluir:


– Temos uma Polícia dos Bichos que nunca desvendou um único caso de rapto ou de um bichocídio de certa complexidade. Vejamos um rol de bichocídio que, em menos de duas décadas aconteceu numa única floresta, cujos contornos estão mais difíceis de desvendar do que descobrir a vacina contra o Coronavirus Covid-19:

1º – Um jovem Bicho foi encontrado enforcado numa mangueira, entretanto a autópsia revelou que tinha o pescoço partido.

Com olhos fixos nos do Leão questionou o deputado Bichinho Verde com ar bajulador:
– Partiu o pescoço e depois enforcou-se?

O Leão não lhe deu ouvidos e mandou o Advogado continuar.

2º – Um Polícia foi assassinado a tiro e tudo indica que o crime tenha sido perpetrado por amigo ou família. A arma utilizada pertencia-lhe e o crime aconteceu em sua casa;

3º – Um Procurador da Selva foi encontrado sem vida e suspeita-se de que terá sido executado, também com a própria arma e na própria casa;
– Será o mesmo Bicho a idealizar e praticar os mesmos crimes? – questionou Cavalo?
– Talvez – anuiu Leão, sorrindo para Cavalo.

– 4º Um velho septuagenário, estimado por quase todos, foi encontrado morto dentro de sua horta, castrado e com olhos furados.
– Fogo! – disse Pato. – Caparam-no e depois furaram-lhe os olhos? Que barbaridade.
– Os bárbaros foram as autoridades. Porque desta vez houve um suspeito – disse Advogado.
– Graças a Deus – congratulou-se de novo o deputado Pato.
– Mas os Bichos da justiça ignoraram tudo porque o bichocida [Equivalente a homicida] era filho do papá-maior. Foi-lhe permitida, facultada e facilitada a fuga. Está no estrangeiro – explicou o jurista.
– Esta é uma terra de chacota – disse Mosca. – Mete-me medo até de fazer atrevimentos.

E o Advogado continuou:

– 5º Um Boi regressava do trapiche, depois de mais um dia de pilar cana na fornalha e de encher algumas parolas de calda fresca. Já muito próximo de sua cocheira, deparou-se com dois Bichos altercando-se e, uma bala disparada da pistola de um deles acertou-lhe mortalmente. Entretanto, ninguém foi intimado, notificado ou mandado contrafé para depôr perante as autoridades.
– Só podia ser um deles a disparar! – disse Peru.
– A justiça não teve essa tua perceção, deputada Peru – declarou Defensor.
– Certamente é algum desses Copo Leite [Menino bonito, filho do papá] que andam por aí riba kanporta! [Desaforadamente; sem se importar com nada nem com ninguém; sem prestar contas a ninguém].
6º – Uma Franguinha foi estuprada e estrangulada no aconchego do seu ninho.
– Isto já é demais! – reagiu Leão, nitidamente impaciente – A Polícia dos Bichos não recolheu vestígios… não examinou a galadura, as impressões digitais e outras pistas que permitiriam que se chegasse ao encalço do Galo criminoso?
– Talvez não. Mas já vão ver.

Respondeu o Advogado, pedindo a atenção e contenção.

7º – Um Ratão que morava no bosque de Renque Purga sumiu misteriosamente.
– Sumiu misteriosamente como? Foi raptado? Será um dos seis que em seis meses desapareceram? – Perguntou Piolho um pouco atrapalhado.
– Nunca souberam. Sabe-se que ele desapareceu e nada mais – explicou causídico.
8º – Um emigrante foi morto com 11 tiros de um revólver, às 6h00 da manhã, quando fazia a sua habitual marcha matinal para manter em forma o seu corpaço.
– Santa Bárbara generosa! – disse Coelho tremendo o bigode de susto.
– O suposto sega-vidas, principal suspeito ab initio, foi apanhado em flagrante na posse de um revolver que se supõe ter sido utilizado no crime. Entretanto, se ele deu 11 tiros ao inocente, o Tribunal deu-lhe um TIR e encontra-se a viver algures no estrangeiro.
– Possivelmente a financiar os seus pupilos que por aqui se encontram encalhados na onda da Padjinha, mergulhados no cheiro da cocaína, com heroína a correr-lhes palas veias e o grogue-fede como corageira para matar mais Bichos – disse Abelha.
9º Um outro jovem Bicho foi morto após sofrer um golpe à catanada – disse jurisconsulto.
– Sofreu golpe à catanada e não souberam quem o catanou? – Interrogou deputado Papagaio.

– Os mistérios invocados, como o segredo de justiça, por exemplo, sufoca toda e qualquer verdade – explicou Advogado.
10 – Recentemente, foi esse nosso irmão de que vos falei há bocado. Foi barbaramente executado. Reitero: queimaram-lhe a cara, serraram-lhe um pé, furaram-lhe os olhos, cortaram-lhe a língua, arrancaram-lhe os dentes e esmagaram-lhe os testículos.

– Malvados! – lamentou Mula que até aqui não tinha dito nada. – Esses criminosos parecem ter frequentados a mesma Universidade e a mesma Faculdade com os inspetores da Polícia dos Bichos e Procuradores da Selva! Não estarão todos envolvidos nesses crimes macabros, de contornos semelhantes e requintes parecidos? Usam armas das vítimas, mutilam, castram e furam os olhos… e a justiça nem se preocupa?
– No caso desse nosso irmão até se preocuparam – dilucidou Advogado. – Havia muito sangue nas imediações onde suspeitaram ter ocorrido o crime. Quatro dias após o levantamento do cadáver, que tinha sido identificado e anunciado na Televisão como sendo de um Manjaco, ou seja, de um preto da Costa de África, vieram a saber que afinal o corpo era do nosso irmão, daqui mesmo da zona, e que tinha um irmão que era muito “confuzento”. Daí começou a preocupação das autoridades. Não tinham efetuado a devida autópsia ao Manjaco e já havia um relatório da médica legista em como o Manjaco teria caído de uma altitude, tendo partido um pé, o que lhe terá causado a morte.
– Que mentira mal contada – Disse Bode, atarantado e cheio de medo.

Aliás, na sala já todos ficaram cheios de medo. Onde não há justiça não pode haver paz; onde não a paz, não há tranquilidade; onde não há tranquilidade, não há segurança; onde não há segurança todos se defendem. E quando todos se defendem torna-se bagunça. E perante uma bagunça até os grandes se ajoelham. Pois, todos se atacam.

– Quatro dias depois – retomou o Advogado – quando souberam que o Manjaco afinal era patrício, e que tinha um irmão “confuzento”, uma equipa da Polícia dos Bichos, sem se importar por ser um domingo, amanheceu no local, supostamente para recolher vestígios para perícias laboratoriais. Mas o objetivo era precisamente o inverso. Era para adulterar todas as provas. Tanto que dias depois, o resultado apurado foi de que o sangue recolhido pertencia a um outro Bicho. Mas isso não é nenhuma novidade. Do laboratório da Polícia dos Bichos, assistida pela médica que se diz legista, os relatórios saem fabricados por encomenda e à medida das suas conveniências, a partir de uma minuta previamente definida.

– Mas isso é injusto!
Questionou a deputada Minhoca para epilogar de seguida o ilustríssimo Advogado Macaco:
– Não só é injusto, como também é ilegal.

No dia seguinte ao crime, uma Ovelha encontrou uma poça de sangue no interior de uma casota onde se supõe ter sido o palco da chacina ou, pelo menos, a arrecadação onde o corpo terá sido guardado até ser levado para a lixeira onde foi encontrado. A Polícia dos Bichos e a Procuradoria da Selva foram imediatamente informadas, mas nunca fizeram nada, nunca entraram nessa casota para recolherem os elementos de prova, nem a Ovelha que disse ter visto sangue foi alguma vez chamada a depor.

O Cão levantou-se sozinho e bateu palmas. Mas ninguém o seguiu. E esse gesto fez ressurgir de novo a chacota, de forma tão violenta que buliu com a consciência do Professor, levando-o a assumir e a confessar a autoria do catingoso fus. Disse que tinha comido, no dia anterior, quatro ovos fervidos e uma caneca de camoca com leite, que lhe teria descomandado as funções intestinais, originando-lhe aquele assopro anal, e que lhe escapara de forma involuntária. Arrependeram-se todos e pediram desculpas ao deputado Cão. Alguns até foram abraçá-lo carinhosamente. E com aparente comiseração, o Leão repetiu a pergunta de há algumas horas:

– Estás melhor das cataratas?
– Estou um poucochinho melhor. Embora ache que fiquei com alguma mazela.
– Porquê? Mazela de quê? – Quis saber o Leão.

– Depois das cirurgias, os carros ficaram a parecer-me do tamanho de uma Barata.

– Então tens que ir falar com um oftalmologista para te receitar uns óculos progressivos, de forma a veres as coisas, de perto ou de longe, do seu tamanho real. Há dois cá que são muito bons. O Dr. Julio Andrade e o Dr. Bernardino Sanches. São formidáveis especialistas.
O deputado Macaco, agora Chico, olhou para o lado e disse um pouco tímido:

– Cão usando óculos?! Do jeito que ele é malcriado, que anda sempre em bulha… a lutar?! Deus do Céu! Vai ter que comprar óculos todos os dias.

Antes de se despedir e de se ir embora, o Advogado expôs algumas das preocupações da Amnistia Internacional e da Comissão Nacional para os Direitos dos Bichos.

– Vou-me despedir de vocês, mas não sem confessar primeiro que estou seriamente preocupado. E deixar-vos saber que a Comunidade Internacional está igualmente preocupada e verdadeiramente engajada em resolver o caso e exigir que a justiça se faça. As suas prioridades estão centradas no combate aos crimes com coberturas institucionais, a marimbância das investigações e a desenfreada corrupção constatada. Vejamos: um pobre investe as suas economia na educação e formação de seus filhos, mandando-os pra faculdade, de onde saem bem formados e com altas notas, entretanto, não encontram trabalho se não participarem em concursos fantoches, cujos resultados são viciados e estupidamente desrespeitados. A Comunidade Internacional está a trabalhar afincadamente para proibir que, para serem diretores ou PCAs das empresas Públicas, não valha apenas o Certificado de Habilitações Literárias. Tem-se constatado que o Cartão do Militante do Partido no poder tem um peso maior do que o do diploma de um Mestre ou de um Doutor, ou até de um Pós-Doutor ou especialista na área, alegando-se, como argumento, a confiança política.

A Porca-da-Índia olhou para os seus incontáveis filhotes e falou para eles:

– Não vos vou mandar para a escola, coisa nenhuma. Vou ensinar-vos a cantar o Hino Nacional, a saber os nomes dos Presidentes da República, dos Primeiros-ministros, dos Ministros e Secretários de Estado. Vou ensinar-vos a seguir as sondagens e dar vivas definitivos só no fim das campanhas eleitorais, quando já se conhecem as sondagens e já se têm a certeza de qual Partido irá ganhar.
– Vejo que não vamos ficar com apenas um Bichinho Verde aqui – disse Pombo.

– Quero lá saber! Não lhes vou ensinar a fazer as contas nem decorar a tabuada. Ensino-lhes como roubar sem serem chamados ladrões.
– Como? – perguntou Chico com muita curiosidade.

– Vou ensinar-lhes a desviar. A desviar do cofre do povo para as contas bancárias deles. Sendo assim, se forem apanhados depois de um bom desvio, serão perdoados porque não terão culpa. Dirão que aconteceu porque não souberam contar. Vão todos ser políticos. Ensino-lhes, sobretudo, a não ter vergonha de nada e de ninguém. Vou prepará-los para isso. E vou já fazer-lhes Cartão de Militante. Vou fazer a cada um deles um Cartão de cada Partido. Isso é que está a dar.

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