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Do preconceito a caça às bruxas. Uma outra lente para a problemática da toxicodependência   
Colunista

Do preconceito a caça às bruxas. Uma outra lente para a problemática da toxicodependência  

É imperiosa uma viagem, diga-se, longa ao passado e fazer-se o caminho inverso até os nossos dias, para conhecermos a história das drogas, do seu consumo e das sucessivas políticas engendradas para o seu enfrentamento. Diz-nos a literatura que o fenómeno do consumo de substâncias psicoativas remonta o tempo das velhas civilizações, como a Azteca, a Suméria, a Egípcia e a Grega. No entanto, diferentemente ao que assistimos atualmente, o uso destas substâncias tinha fins específicos. Eram usados em momentos próprios e nem todos, como se percebe, estavam autorizados a consumir. Nos dias atuais, sob influências de fatores de ordem cultural, económica, política, social e científica, o consumo de drogas assumem outras características e constituem um problema global e preocupante. Um olhar mais escavado revela-nos a raiz da intolerância e do preconceito à volta desta problemática, que, por conseguinte, é direcionados aos usuários/dependentes de drogas. De igual modo aponta-nos as luzes para o verdadeiro “culpado”. Por interesse de alguns, as Políticas Públicas, de forma sistemática e esticada no tempo, ao invés de constituir uma rede consistente de proteção a favor dos usuários/dependentes de drogas, tem funcionado como empecilho à resolução deste grave problema. Porque pensada a partir de crenças e vontades individuais, ou de uma elite política / económica.

Este artigo tem impulso na denúncia pública feita por um deputado municipal do Sal, em forma de artigo, publicada na secção “Ponto de Vista” do on-line Santiagomagazine.cv, sob o título “Drogado”  (https://santiagomagazine.cv/ponto-de-vista/drogado). Nesse artigo, o denunciante Aldirley Gomes, diz ser, reiteradas vezes, vítima de preconceito e apelidado de DROGADO por um dos vereadores daquele mesmo município. Fato que é lamentável e repugnante. Infelizmente, como reconhece no final do seu texto, “o preconceito ainda é um dos principais problemas que o país enfrenta na luta contra a toxicodependência”. E não deixa de ter razão.

De fato, esta constatação ultrapassa a esfera do senso comum e do “achismo”, encontrando base nos estudos já realizados em Cabo Verde, relativamente a esta matéria. Refiro-me, por exemplo, ao “1º Inquérito Sobre a Prevalência do Consumo de Substâncias Psicoativas na População Geral”, realizado em 2013, que é elucidativo quanto à proporção alarmante deste fenómeno no nosso torrão de morabeza. Se é verdade que, no universo dos inquiridos, 58% acredita que o usuário/dependente de drogas é um DOENTE, outrossim, preocupa-nos a fato de, ainda, 27% não ter dúvida de que aquele é um DELINQUENTE. Dos restantes, 6% representa o grupo dos INDECISOS e 8% integra os que optaram em não responderem à questão.

Soma-se o inquietante resultado do “Estudo Sócio-comportamental e de Seroprevalência de VIH em Usuários de Drogas”, realizado em 2017, que revela que 30,7% dos usuários/dependentes de drogas sofreu violência física, 40,1% sofreu assédio verbal, 29,8% foi excluído de reuniões sociais, 22,8% foi tratado de forma diferente ou recusado serviço, 9,9% foi forçado a fazer sexo contra a sua vontade, 43,9% foi rejeitado ou maltratado pelos membros da família e 44,2% foi recusado ou perdeu o emprego. Cada um que faça a sua leitura!

Pois, o que aconteceu ao deputado municipal do Sal, Aldirley Gomes, não é um caso isolado e nem, tão-pouco, recente. Pelo contrário, esta forma de tratar o usuário/dependente de droga há muito que faz parte do nosso quotidiano. Mas, pelos envolvidos, este caso em concreto, merece, ainda mais, a nossa reprovação e veemente combate.

No meu primeiro livro “A toxicodependência é uma doença tratável. Como e onde se tratar?” (2017), exemplifico, em duas história (dum rapaz e duma rapariga), situações flagrantes de preconceito, de estigma e de marginalização em relação ao usuário/dependente de drogas, por parte da família e das Instituições Publicas do país. Esses episódios do livro ilustram a amplitude desta forma ignóbil de tratar “um semelhante”, só porque se viu apanhado pelo infortúnio do vício das drogas. Eu próprio, certa vez, fui excluído de preencher uma vaga de emprego, após passar, com distinção, em todas as provas do concurso, só porque, à entidade empregadora, chegou a informação de que eu tinha uma passagem pelo mundo das drogas. Ponha-se o(a) leitor(a) no meu lugar: qual o sentimento que lhe habita a mente neste instante?

Mas, o(a) caro(a) leitor(a) poderá, legitimamente, questionar se não haveria outro(s) problema(s) que suscite(m) maior preocupação ao país e que pudesse(m), por isso mesmo, merecer a minha atenção e análise? Provavelmente, sim. Acredito que sim. Haverá, com certeza, um montão de casos (de problemas) que mereciam ou poderiam estar na pauta da minha atenção. E estão, inequivocamente!

Por exemplo, o caso do Inspetor da Polícia Judiciária, que se viu em meio a um suposto caso de envolvimento com o crime organizado. Ou então, o fato da Senhora Ministra da Justiça anunciar, num provir próximo, a implementação da Justiça Restaurativa em Cabo Verde, como uma das forma de combater a morosidade da justiça. E podia citar, ainda, o caso “bombástico” e atual do advogado/deputado Amadeu Oliveira, ou outros tantos, que têm preenchido as conversas dos bares e das esplanadas e que, de certeza, têm tirado o sono aos nossos políticos.

Entretanto, e felizmente para mim, estou, como sabiamente argumenta o Professor Catedrático Paulo Ferreira da Cunha, no papel de “analista” e não de “político”. Escolhi, afinal, este tema, porque “o analista pode escolher o problema (o fenómeno) que deseja estudar (analisar) e sobre o qual pretende refletir. Ao político, contrariamente, os problemas são-lhe impostos”. Não significando, contudo, que todos terão, por ele, o mesmo tratamento ou atenção.

E o problema do preconceito e do estigma a que sofrem os usuários/dependentes de drogas, apesar da sua atualidade e dos problemas que levanta, de ordem social, política, psicológica, ética e moral, tem sido preterido a um plano secundário, quiçá terciário.

É por este motivo que, aproveitando o “desabafo” do Aldirley Gomes e, ademais, por compreender completamente a sua indignação, que trago este problema à análise e à reflexão coletiva. Pois, embora se reconheça alguma melhoria, esta forma de tratar os usuários/dependentes de drogas, diga-se condenável, tem feito escola no nosso país, de há muito tempo para cá, com prejuízos incomensuráveis para os visados, e não só. Pelo que urge um combate implacável, que, no entanto, não será eficaz, se se não identificar o verdadeiro “culpado”. E, para isso, vamos ter que fazer esta expedição de descoberta juntos, para não sermos injustos e nem levianos nas nossas constatações.

É imperiosa uma viagem, diga-se, longa ao passado e fazer-se o caminho inverso até os nossos dias, para conhecermos a história das drogas, do seu consumo e das sucessivas políticas engendradas para o seu enfrentamento. Diz-nos a literatura que o fenómeno do consumo de substâncias psicoativas remonta o tempo das velhas civilizações, como a Azteca, a Suméria, a Egípcia e a Grega. No entanto, diferentemente ao que assistimos atualmente, o uso destas substâncias tinha fins específicos. Eram usados em momentos próprios e nem todos, como se percebe, estavam autorizados a consumir. Nos dias atuais, sob influências de fatores de ordem cultural, económica, política, social e científica, o consumo de drogas assumem outras características e constituem um problema global e preocupante.

Um olhar mais escavado revela-nos a raiz da intolerância e do preconceito à volta desta problemática, que, por conseguinte, é direcionados aos usuários/dependentes de drogas. De igual modo aponta-nos as luzes para o verdadeiro “culpado”. Por interesse de alguns, as Políticas Públicas, de forma sistemática e esticada no tempo, ao invés de constituir uma rede consistente de proteção a favor dos usuários/dependentes de drogas, tem funcionado como empecilho à resolução deste grave problema. Porque pensada a partir de crenças e vontades individuais, ou de uma elite política / económica.

No início da década de 70 do século passado, os Estados Unidos da América, através do seu Presidente Richard Nixon, por considerar que o abuso das drogas ilegais era “o inimigo público número um”, engendrou e liderou uma “Guerra contra as Drogas, a partir de uma Política severa, intolerante e repressiva, também, contra o usuário/dependente desta substância psicoativa. Esta forma de combater o tráfico de droga e estancar o seu consumo chegou a maioria dos países, inclusive ao nosso (basta ver a legislação e as práticas sobre esta matéria) e, na sua expressão máxima, chega às Filipinas, em 2016, pelas mãos do Presidente Rodrigo Duterte, custando a vida de milhares de usuários/dependentes, e não só.

Esta Política atroz diabolizou, sempre, a droga, criando uma muralha de medo, que, no seu substrato, comporta um preconceito imbecil em relação aos que a consome. Só que esta abordagem, embasada na proibição e na repressão, tem-se mostrado um fracasso e contraproducente, pelo que não é difícil deparar-se com uma representação errónea e, amiúde, hostil do usuário/dependente de droga. Esta política, diga-se, tem servido de suporte a pessoas, algumas com responsabilidades político-social de relevância, a terem atitudes e comportamentos preconceituosos, inadmissíveis nas atuais sociedades humanos e de direito, pelos múltiplos e nefastos impactos advenientes.

Por isso mesmo, tem razão o ex-Secretário-Geral da Nações Unidas, e membro da Comissão Global de Políticas sobre Drogas, Kofi Annan quando afirma: “As drogas já destruíram muitas vidas, mas as Políticas equivocadas sobre drogas destruíram muitas mais.”

Então, precisamos, urgentemente, falar sobre a droga. Vencer os tabus. Trazer informações confiáveis e argumentos convincentes. Partilhar fatos sobre drogas, não desinformações. É preciso fazer com as pessoas - uma boa franja, diga-se – mude a sua lente com a qual enxerga o mundo e as pessoas à sua volta. Fazer valer a máxima de Descarte de que “o que parece pode não ser”. Infelizmente, fomos (estamos sendo) forçados a percepcionar o mundo através de lentes embaçadas, onde se demonstra e se nutre mais afeto e admiração a um traficante do que a um dependente químico – um doente. Absurdo!   

Mas, sobretudo, fazer com que as pessoas percebam que não estamos no controlo de todos os possíveis desdobramentos da nossa existência. Pois, a jornada de cada um é imprevisível, inclusive dos nossos entes mais próximos, por exemplo, dos nossos filhos.

Então, urge, para uma eficaz enfrentamento e combate a este flagelo mundial, como defende a especialista em Segurança Pública e Políticas de Drogas, Ilona Szabó, termos uma Política Pública bem elaborada, que funcione como uma rede de proteção para “o equilibrista na corda bamba”, para amparar os que não conseguirem se equilibrar sozinhos. Uma Política Pública que não pode (e nem deve) ser pensada a partir de crenças e vontades individuais, porque ela se destina ao coletivo. Tem que ser “boa” para todos e servir todos nós.

É preciso, igualmente, que, cada um de nós, nos coloquemos no lugar do outro. Ajudar. Suportar. Não estigmatizar, não excluir. Afinal, o imprevisto sobrevém a todos e nenhum dependente de droga é feliz e, de certeza, que não é o seu gosto estar na condição de dependência e de “miséria humana”.

Não busquemos, por isso, o “culpado” no usuário/dependente de droga. Vamos, antes, como disse o amigo Adelino Barros, mentor em Inteligência Emocional, e concordo, “trabalhar a nossa consciência, aprimorarmos enquanto Homem, para termos a sociedade que todos projetamos e pretendemos” – livre da INTOLERÂNCIA e do PRECONCEITO.

 

*Licenciado em Criminologia e Segurança Pública.

 

 

 

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