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Adeus Cimboa…?
Colunista

Adeus Cimboa…?

Cimboa é um instrumento musical que terá chegado a Cabo Verde vindo da África continental, na companhia dos malogrados homens e mulheres escravizados.

Este instrumento, outrora fiel companheiro de cantadeiras e cantadores do Batuku e do Finason, dava um toque especial às festas, sempre que é chamado ao terreiro.

Na verdade, a Cimboa não se embarcou, materialmente falando, em nenhuma das caravelas que zarparam do continente rumo à Ribeira Grande de Santiago. Tendo em devida conta que aos cativos não lhes eram permitido portar nenhum pertence, entende-se desde logo que os mesmos foram trazidos para cá, de mãos a abanar, neste caso de mãos amarradas.

Nessa lógica, somos obrigados a concluir que todas as Cimboas que existiram no arquipélago, até os dias de hoje, foram construídas em Santiago de Cabo Verde, e com matérias-primas locais.

Tudo aquilo que os continentais puderam trazer de África, veio incrustado na alma, gravado na memória, ritmado no coração, e compassado nos pés. Nada puderam trazer nas mãos a não ser; suor, sangue e grilhões. Nada puderam trazer na cabeça, se não, a esperança de que um dia toda a dor acabasse.

E Cimbó - como ainda é chamado no continente - não poderia ter chegado a estas ilhas de outra maneira. E por ser um artefacto de pequeno porte, menor que o cavaquinho tradicional,- seria de fácil transporte e poderia ser escondido em lugares mais insólitos, seja no campo ou nas senzalas.

A Cimboa não é apenas um simples instrumento musical… Ela é, em primeiro lugar, um símbolo de resistência contra uma barbaridade humana infinitamente vergonhosa, ela é o eco das lamúrias de mulheres desenroupadas e expostas às piores intempéries, é a ressonância de gemidos recalcados de homens fortes e valentes em hemorrágica agonia, é o ranger de pregos cravados nas cavernas do navio que navega rumo ao encontro inevitável com a morte.

A Cimboa refez todos os sons que a dor, o desespero, a injustiça e a humiliação provocaram nestas criaturas… E fá-los até hoje! Nota-se que existe muito pouco instrumento musical de origem africano em Cabo Verde. Porém, a Cimboa teve outra sorte. Entende-se, contudo, que para construir um instrumento destes, no arquipélago Berdiano, encontram-se com relativa facilidade, quase todos os materiais necessários para o efeito.

Excepto a crina ou cabeleira de cavalo, que é habitualmente encomendada do Brasil, os restantes materiais, nomeadamente madeiras - mogno, pinho, pau de barnelo, carriço -, pele de cabrito, cabaça ou casca de coco, são materiais facilmente encontrados localmente.

O som da Cimboa tem um timbre muito característico, que faz lembrar a voz humana, - inclusive, há quem diga que Cinboa, canta, – o que proporciona uma certa dinâmica ao terreiro, para quem achar que apenas o som da txabeta pode causar alguma monotonia, depois de algumas horas de batuku.

Este instrumento desempenha ainda um papel muito importante no terreiro: o mesmo consiste em assumir a função de “solista”, em substituição aos cantadores ou cantadeiras, tendo em conta que em muitos casos o Batuku é fincado até ao alvorecer e quem já enfrentou um terreiro sabe que não há voz que aguente duas dezenas de batucadeiras em frenesim, durante mais de sete horas de batuku, entre gritos, alaridos, assobios, tornos, calor e hálitos etílicos.

Daí advém o ditado popular que diz: “Batuku ki ka ta manxi ka ta podu banku na rua”. Ou seja, é melhor não começar, se não se tem a certeza de que se vai concluir.

As cantadeiras e os cantadores do Finason sempre tiveram um grande apreço por este magnifico instrumento, que apesar de possuir apenas uma única corda, acompanhava graciosamente as cantigas que as batucadeiras cantavam, e quando em contra-solo; este gerava sempre uma penetrante harmonia que percorria as ribeiras em tons graves e roucos, nas noites festivas, onde os kutelos estão longe de se manterem ermos; com tantas movimentações e exaltação da mocidade Badia, que em muitas ocasiões vão até ao raiar do sol.

Depois de um árduo dia de trabalhos, característicos do interior da Ilha: sementeira, monda, recolha de pastos, pescarias a remo, manuseio de pilão e balaios, construção de paredes de pedra, e demais labores não recomendado aos malandros, eis que chega o desejado fim-de-semana, e este é aproveitado para se mover a cintura no sentido contrário do relógio, a fim de desenroscar as dores e exorcizar eventuais angústias.

Sabe-se que várias são as peças de Batuku que foram compostas a partir de melodias criadas pela própria Cinboa, e que posteriormente ganham as palavras que compõem o texto dando origem a alguns dos maiores clássicos dentro deste género.

Ainda que tocadores de Cimboa nunca abundaram por aqui, os poucos que se conhecem fizeram furor por toda a ilha. Nhu Ariki Cinboa, e nhu Manu Mendi, naturais do Tarrafal e de São Domingos, respetivamente, foram em tempos, companheiros inseparáveis de Nha Bibinha Kabral e nhu Ntoni denti D’oru, duas vozes incontornáveis do Batuku e do Finason. De entre os mencionados, apenas se encontra vivo, nhu Ntoni Denti D’oru, com 91 anos de idade e com um quadro de saúde frágil.

Apenas contamos com dois mestres de Cimboa vivos, Nhu Eugénio no Tarrafal e nho Roque Sanches em Renque Purga, concelho de Santa Cruz, ambos em idade muito avançada. Arlindo Sanches, filho de Roque Sanches, também constrói e toca Cimboa e constitui uma pequena esperança. Faz todo o sentido falar de Pascual, um músico de São Domingos, fabricante de Cimboa, que também esteve envolvido num projecto de recuperação da Cimboa, uma iniciativa do IIPC - Instituto de Investigação e Património Cultural- em 2008, com o apoio da Unesco.

Desde então não se conhece nenhum projecto direccionado para a recuperação da Cimboa.

Adeus Cimboa…?

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SOBRE O AUTOR

Carlos (Princezito)